quarta-feira, 30 de maio de 2012

FHL: O distanciamento no 1º Ato

     O teatro clássico baseia-se em fundamentos aristotélicos. Neste, a realidade é imitada ao máximo, de forma a existir um sentimento de identificação por parte do público. Este, estando emocionalmente envolvido, facilmente sente piedade ou terror pelo herói da peça, facilitando, assim a persuasão de uma mensagem moral.
     O teatro brechtiano opõe-se ao clássico precisamente por não haver um mínimo esforço de identificação com o público. Este pretende provocar estranheza. O distanciamento entre os atores e o público faz com que este não esteja toldado pelos sentimentos, permitindo uma avaliação mais racional e crítica, ou seja, uma atitude ativa.

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     A obra Felizmente Há Luar! foi criada com o mesmo intuito. O entusiasmo do povo não é sentido pelo público, bem como também não é a ganância arrogante de Vicente, quando assume clara e objetivamente o prazer e as vantagens de ser corrupto. Se estas declarações fossem feitas com uma persuasão subtil, o público provavelmente sentir-se-ia tentado a imitar. Não é assim que Vicente se expressa: ele expõe-se com brutidão. Isso faz o público ficar chocado e refletir.
     O mesmo acontece com a mudança de cenários e a alternância de personagens em palco. Não existindo cenas, os lugares, o tempo e as personagens vão sendo mudados através do apagar das luzes ou do incidir sobre uma porção do palco. São, portanto, poupados realismos e vai-se diretamente ao encontro do que é importante.

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     O elemento, no entanto, mais decisivo neste processo de distanciamento crítico é o começo da peça. Apenas a personagem que introduz a peça está iluminada e, sem apresentações, coloca perguntas surgidas aparentemente do nada, antes de virar as costas ao público e prolongar o discurso. Este gesto coloca o público numa posição ativa, desde o começo, por se aperceber daquela invulgaridade e da da necessidade de prestar atenção para compreender. O público fica, assim, apto para permanecer numa posição racional.
     O distanciamento em Felizmente Há Luar! tem ainda uma outra utilidade: por não representar nenhuma realidade concreta, não pode ser acusado de ser antissalazarista. É, portanto, uma crítica eficaz, em tempos de ditadura.

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